POEMA

AOS MORTOS VIVOS DO TARRAFAL


Ao cabo de Cabo Verde
dobrado o cabo da guerra
quando o mar sabia a sede
e o sangue sabia a terra
acabou por ser mais forte
a esperança perseguida
porque aconteceu a morte
sem que se acabasse a vida.

Ao cabo de Cabo Verde
no campo do Tarrafal
é que o futuro se ergue
verde-rubro Portugal
é que o passado se perde
na tumba colonial,
ao cabo de Cabo Verde
não morreu o ideal.

Entre o chicote e a malária
entre a fome e as bilioses
os mártires da classe operária
recuperam suas vozes.
E vêm dizer aqui
do cabo de Cabo Verde
que não morreram ali
porque a esperança não se perde.

Bento Gonçalves torneiro
ainda trabalhas o ferro
deste povo verdadeiro
sem a ferrugem do erro.

Caldeira de nome Alfredo
fervilham no teu caixão
contra o ódio e contra o medo
gérmens de trigo e de pão.

E tu também Araújo
e tu também Castelhano
e também cada marujo
que morreu a todo o pano.

Todos vivos! Todos nossos!
vinte trinta cem ou mil
nenhum de vós é só ossos
sois todos cravos de Abril!

No campo do Tarrafal
no sítio da frigideira
hasteava Portugal
a sua maior bandeira.

Bandeira feita em segredo
com as agulhas das dores
pois o tempo do degredo
mudava o sentido ás cores:
o verde de Cabo Verde
o chão da reforma agrária
e o Sol vermelho esta sede
duma água proletária.

Do cabo de Cabo Verde
chegam tão vivos os mortos
que um monumento se ergue
para cama dos seus corpos.
Pois se o sono é como o vento
que motiva um golpe de asa
é a vida o monumento
dos que voltaram a casa.


José Carlos Ary dos Santos
(poema feito quando da trasladação para Portugal dos restos mortais dos 32 resistentes assassinados no Tarrafal)

9 comentários:

Maria disse...

O grande Ary, um poema de homenagem a quem veio do Tarrafal e foi, em cortejo impressionante, até ao alto do s. joão.....

Anónimo disse...

As palavras poéticas tambem servem, para recordar momentos inesquecíveis.O Zé Carlos, tinha arte no pensamento e nas palavras!
Abraço
josé Manangão

GR disse...

«Todos vivos! Todos nossos!
vinte trinta cem ou mil
nenhum de vós é só ossos
sois todos cravos de Abril!»

Estes Cravos de Abril continuam-nos a dar tanta força, para a Luta diária.

GR

samuel disse...

"Algures na arena da esperança
contra os cornos do fascismo
um poeta abria a dança
dos passos do heroísmo
suas palavras agudas
feriam as carnes da besta
pois jamais se quedam mudas
as vozes de quem protesta
algures na arena da esperança
contra os cornos do terror
um poeta abria a dança
das palavras que dão flor"

(Excerto de um poema do Zé Carlos Ary, musicado por mim).

Abraço.

Fernando Samuel disse...

maria: e que cortejo! lembras-te como chovia?
Um beijo amigo.

josé manangão: o Zé Carlos fazia da Poesia uma arma - aliás, uma arma poderosíssima.
Um abraço amigo.

gr: são uma fonte inesgotável de força para a nossa luta.
Um beijo amigo.

samuel: grande falha a minha, que não conheço essa tua canção! Mas estou certo de que virei a gostar muito dela; se a Poesia é uma arma, a Poesia mais a Música e mais a Voz, são mais do que três armas.
Um abraço amigo.
Um abraço amigo.

Maria disse...

Se me lembro como chovia?
Eu ia atrás de um dos carros funerários (numa daquelas tarefas...) e cheguei ao alto de s. joão ensopadinha... porque decidimos que ninguém (ali) abria chapéus de chuva....

Beijo

Fernando Samuel disse...

maria: lá nos encontrámos, certamente,«numa daquelas tarefas...
Beijo. E até dia 1 de Março.

Anónimo disse...

Haveremos de vencer. o povo há-de conhecer os seus verdadeiros heróis.

Fernando Samuel disse...

antuã: «a vitória é difícil mas é nossa».
Um abraço amigo.