Ainda a minha avó...

Estou de regresso a Lisboa! Com a alegria estonteante de quem vem militante do sonho. Espero por sábado. Revejo amigos. Marco encontros de abraços onde as saudades atenuam. Brindo à vida e ao Partido com camaradas. e à noite... à noite como agora oiço Schubert e desvendo os meus próprios mistérios em gavetas que abandonei ao partir para habitar a planície... Velhos textos batidos na minha velha máquina, que me ficou do meu avô Lains. Alguns amores, muitos sonhos, amarguras, e, agora, a última carta que enderecei à minha velhota morta faz dias. No seu 85º aniversário, porque não pude estar presente junto com a família que nesse dia a mimava ainda mais, escrevi-lhe umas linhas que, agora na amargura que me causa o saber do seu fim, na impossibilidade de ver repetidos os afectos (de que me lembrou o Sérgio Ribeiro) quero partilhar com vocês, para que saibam ainda melhor de que andorinha vos falava no meu ultimo texto. Talvez algum sentido para o luto, assim partilhado... ou talvez apenas alguma possível beleza em palavras que o meu coração endereçou a alguém que amava. Pois bem, aqui vai:

Oitenta e cinco. que ciúme. sabes avó, invejo-te os dias e a lucidez dos anos. a ternura transbordante por vezes tímida atrás de alguma resignação.e logo a gargalhada bem disposta na brandura de uma brasa. a mantinha de lã. os óculos para a revista e o chá entre os gatos, as linhas para os pés dos netos e algum botão, para que não fique no caminho. sabes por certo as arestas do frio e de alguma ausência. conheces a amargura de alguns trilhos. mas não esqueças nunca a doçura possibilitada no amar das estrelas. Lembras-te velhinha bonita, quando na casa creme, me chamavas, no nosso segredo, "minha estrelinha"? Lembras avó? quero que saibas que me lembro constantemente disso, quando a solidão das montanhas transmontanas, ou na ausência que a planície lembra, assim como nos paralelos húmidos de Lisboa, me enchem a cabeça as palavras boas no teu regaço. Maduro como o Outono das uvas, ao colo do avô lains. É com a alegria breve e profunda que prenuncio as mesmas palavras - num chamamento que a mim mesmo absorva alguma solidão - nas noites em que o céu é claro e o horizonte grande demais para a pequenez dos homens, ainda que muitos e juntos. Sou memória das tuas mãos em fragas de festas tempestuosas, percorrendo a minha face no dia do meu regresso ao regaço dos meus. sou os teus olhos e as tuas rugas mansas quando contemplo a poesia das coisas e o mar aberto. talvez regaço do teu linho no agosto abrasador. sou filho e herdeiro das tuas tempestades e da tua mansidão. sou o rosário e a ladaínha da tua prece. ainda que aqui tão longe... tão sentimentalmente perto. aí, nesse local de nenhures que o sentido designa coração.


muito teu
teu neto e tua estrelinha

antónio sérgio.
Lisboa, Campo Santana, 15 de Dezembro de 2004

1 comentário:

Fernando Samuel disse...

Os amigos partilham as alegrias e as dores, as mágoas e os sonhos: por isso são AMIGOS.
Um abraço do tamanho da amizade.