Contos do Sul

Dias difíceis I

Longe, longe. Não o local, que longe só fica para os Homens Distantes. Antes o olhar, perdido entre o escaldar dos sobreiros no horizonte e a rua cambaleante que o vinho perturba. Um passo, outro. E já as gargantas se ouvem no lamento que atravessa a cal empobrecida pelo duro dos dias. Não se pôs ainda o sol, outrora sacrilégio para os lavradores da terra, mas a tasca já está invadida pelo sufoco dos homens desempregados. Há poucos dias findaram-se as ceifas e agora, até às podas (se a mina não admitir mais ninguém – difícil será não despedir ), onde alguns enganarão a miséria que transportam, os braços dos da terra prendem-se ao balcão procurando distracção para a inutilidade que outros lhe impõem. – São bichos de trabalho, com necessidades mínimas. Animais bebedolas e irresponsáveis. E ainda para aí se juntam, procurando na greve motivo que lhes faltava para não fazerem nada. E o pior são esses comunistas... Ouvem-se os de muita folga rosnarem, preenchendo os dias da sua calunice. Mas Joaquim Gadanha, ainda que pudesse, não está em condições de lhes responder. Vem da feira de Santa Iria onde rebentou o último cartucho dos tostões ganhos na empreitada. Torto, mais o dia áspero que ele, e cisma na terra batida que lhe foge aos pés: - Bônote!- ninguém responde. Talvez cismem os lavradores reunidos: - Que breu lhe preenche o cérebro e lhe tira a claridade das cinco da tarde? – se fossem sensíveis à fome seria isto, talvez, que pensariam. Mas remetamos o narrador para o local que lhe compete e continuemos. Ninguém respondeu e, Joaquim Gadanha sua. Sua no exercício que é manter-se de pé. O farol é o ruído de fundo, ao fundo. Pronuncio do Cante ainda em afinação.

A porta estava encostada, protegendo talvez os olhos da cegueira da luz. Ou a luz dos homens mal iluminados.... Custou a empurrar, pouco ajudado pelos vapores do álcool que lhe fazem tremer os braços. Formigueiro contínuo, reminiscência das chagas das searas. À sua saudação silenciosa, em custoso aceno da cabeça, responde-lhe o burburinho que não cessa à sua chegada...

Há lobos sem ser na serra...

Mestre Pratas afina a garganta que o copito já localizou e chama a polifonia de dentro das outras consciências e corpos maltratados.

eu ainda não sabia,

debaixo do arvoredo

trabalham com valentia

Pára-arranca que parece abstracto perante a distracção ou ensimesmamento de cada um. Mas, contrariando a mansidão vagarosa da canícula, de repente, as vozes respondem ao chamamento que a vivência lhes ensinou, e a polifonia abraça a cal arrefecida do interior da tasca do joão das cabeças

-TRABALHAM COM VALENTIA

CADA UM NA SUA ARTE

HÁ LOBOS SEM SER NA SERRA

EU AINDA NÃO SABIA

José Gentil “Famila” – assim conhecido por todos tratar como compadre – saboreando a liberdade que a presença do lavrador não permitiria, achega-se à frente, poisa as mãos rudes uma no balcão outra no ombro ali perto e cumpre a sua missão de boa voz:

Maldita sociedade

Estás tão mal organizada

Quem não trabalha tem tudo

Quem trabalha não tem nada

E novamente a polifonia no refrão já lido, ouvido, não sem antes o Chico Lota a ter levantado com a competência do Alto. E depois o silêncio que necessário se cumpre para que se assimile o colectivo no que cada um cantou.

Aproveitemos o silêncio e voltemos a Joaquim Gadanha. Pediu uma selha mas não a bebe de trago enquanto não souber como a pagará. Em casa espera-se a farinha, o trigo para as papas do mais novo (são cinco!), o naco de toucinho prometido à fome dos filhos para quando fosse santa iria e as suas caravanas e tendas, o almude de azeite para temperar o pão que quase nunca existe em fartura. Rasam-se os olhos de água. Há a desculpa de que se canta e o coração estremece... mas fervem-lhe as veias noutras cantorias que se choram menos mas doem mais. E a promessa à Senhora D’aires!? Quem pagará as velas? Talvez o safem nesta agonia, verdadeiro calvário de quem padece, o padre Serafim e o lavrador assim assim, não me lembro do nome pelo qual respondem... solidariedade que a bebedeira de Gadanha no narrador provoca. Não sabe ler, mas tem um jornal com uma foice na algibeira larga por muitas ausências. Disseram-lhe lá no Monte do Marmelo, onde andou ceifando, que é escrito para acabar com a escravatura. Não sabe de palavras caras mas os dedos aceitaram-no porque perceberam a simbiose entre as ditas e a sua condição. E a selha por beber.... Famila redescobre-lhe o ombro:

Então compadre gadanha, tem ávondo de tristeza! Bote-lhe essa, sobram-me uns réis da avia na venda da Maria Bem-querendo.

E Gadanha percebeu como as palavras são doces e ásperas, na mesma voz, na mesma vez, ao mesmo tempo.

Aljustrel, Maio de 2006


6 comentários:

Fernando Samuel disse...

Bonito, muito bonito, este Conto do Sul!
Parabéns e um abraço GRANDE.

Anónimo disse...

Não são de trago fácil as palavras por ti aqui deixadas. Conto do Sul com sabor a "máscaras de vinho", as quais deixam em mim a incapacidade de as ensaiar. A sensibilidade tem destas coisas!
Bonito,...mas dói.

GR disse...

Tanta beleza num conto tão triste.
Muitos Parabéns.

GR

Anónimo disse...

A profundidade e a transparência que é visível no teu conto, revela a sensibilidade que existe em ti...
Muitos Parabéns.

Até sempre camarada

Antonio Lains Galamba disse...

palavras bonitas demais para que sejam, de todo, olvidadas. obrigado por gostarem... escrevo com a certeza que escrevem todos aqueles que amem este sul, esta cal, este cante, esta gente. contar em conto as experiências que me contam é apenas outra forma de da memória fazer revolução. mesmo que esta seja apenas agulha acutilante nos sentidos adormecidos. E Sandra, e Sara e Samuel e GR... a sensibilidade está no coração das palavras... nas vossas e agora nestas que vos devolvo. Tenho-vos, como a este Sul, no coração.

maltes disse...

Andava atrás da letra desta moda para colocar como acompanhamento a uma fotografia que será a primeira que vou colocar este ano e vim parar aqui e aqui me senti em casa, fiquei embevecido com este seu conto, até porque também vou escrevendo alguns contos, curtos também e a verdade é que se me embeveceram os olhos, por ver tão bem escrito este conto que não conhecendo conhecia, do que ouvi contar a minha mãe e de algumas, ainda que poucas lembranças de menino, nascido e criado na freguesia de Quintos, concelho de Beja. Os meus sinceros parabéns, por não permitir branquear o fascismo e um abraço solidário.