Dias difíceis II
Estava noite. Cerrada. Nalgum resquício de urze gretada pela canícula dos dias, o vento assobiava legando aos caminhantes a memória de séculos. Iguais na paisagem dos cabeços. Na paisagem da exploração que obrigou, como hoje, gerações de homens a rasgar a carne nos esqueletos vegetais onde o vento referido assobia a dor das gentes de carnes abertas. Vergados pelo peso, mais da fome que dos sacos que transportam, Joaquim Gadanha e seu filho – Gadanha por descendência dos dizeres do povo, que filhos marcam com a filiação que os pariu, e Manel João por gosto de padrinhos – riscam no pó da noite os passos da fuga. Fuga à miséria que os obriga a noites não dormidas, ao sobressalto dos que em casa ficaram esperando ansiosamente o naco duro de pão que ajudará a enganar a fome nos meses de desemprego, junta-se-lhes o burburinho de frases proibidas ouvidas entre os grupos de assalariados no regresso da jorna. Pão e terra. Terra e pão.
Inverno, dizíamos, noite dolorosa nas mão suadas. Passos assustados por pólvora rebentando no ar. Minutos atrás e a guarda saí-lhes ao caminho
-Qué isso? Qué lá isso? Quem vem lá?
Precipitaram-se na curiosidade e estímulo de levar alguém para apresentar a superiores que lhes subissem as divisas... era longo ainda o caminho poeirento... protegidos pelo breu, safaram-se, pai e filho, para o meio das estevas e apressaram-se cabeço abaixo, urzes, braços espinhosos, em direcção à ribeira. Toca do cigano lendário que outrora correu as suas margens roubando a ricos, dando a pobres[1]. Troar da pólvora e alvoroço. Alvoroço nos corações e pernas fraquejando. Chumbada ainda quente, descendo dos céus e salpicando as costas das mãos que sobre os ombros e cabeças seguravam sacos... esperanças de menos agruras e um toucinho. A chumbada sobrou e derramou-se sobre os filhos pequenos chorando sobre a bofetada da mãe. Esfomeada, o choro dos filhos lembrando a sua fome e injusta condição.
E o seu home e o seu mais velho nos destinos que a privação traçou...
Mas não deixemos os cerros onde Gadanha e filho procuram a toca, como raposa fugindo ao frio dos homens que lhes procuram as peles. “Qué lá isso? Quem vem lá?” são as palavras, as únicas, agora, a ocupar as cabeças dos contrabandistas, que obrigam as pernas a mexerem-se sobre um frio de medo que, noutra circunstância, as deixaria paralisadas. Noite antiga. Imemorial no desejo de justiça que os mantêm verticais perante o peso do susto. Mataram Catarina faz dias. Confirma-se a anteriormente já certeza de que a guarda mata. Encarna a ditadura que esventra os seus filhos dos quais sobrevive, numa exploração atroz lembrando Saturno devorando seus filhos, buscando, na sua juventude, a eternidade. Pão e terra. Terra e pão. E a pólvora... chumbada ainda quente que levantou pele fervente nas mãos calejadas. Os calos são os anéis do trabalhador... Ou círculos da fome nas mãos vazias? Foge um pé, cai a carga. E a pólvora... “Qué lá isso? Quem vem lá?” Manel João arrasta-se na dor.
–Foge pai, foge! Que será da mãe, da casa, com os dois presos?
-Qué lá isso? Quem vem lá? Estas horas por aqui, nestes cerros? Que leva aí?
-Que quer? Levo o que me faz falta...
Leva a esperança de muitas bocas mordidas pela fome! Leva o pão criminalizado por o crime maior que o proíbe! Leva as letras da resistência que as fardas lêem ao contrário. Levava café. A fuga possível à fome rosnante. E o destino canino do calabouço, premeditado.
Aljustrel, Julho de 2006
[1]Ver, José Rodrigues Miguéis, O Pão não cai do céu ,Lisboa, Editorial Estampa, 1996 [1975/76].
1 comentário:
Tempo de fome e de miséria, ponto negro da história da Península Ibérica, em que se atravessava a fronteira de um fascismo para o outro, arriscando a vida a cada passo porque, como diz o José Rodrigues Miguéis" O pão não cai do céu", do céu só caía chumbo!
Faz sentido aquí e agora,e sempre a divulgação destas verdades, para que os jovens percebam, o preço de cada passo da evolução da humanidade.
Parabens pela ideia, António Lains Galamba, um abraço
josé manangão
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