A MORTE SAÍU À RUA

O PINTOR MORREU


«Na noite de 19 de Dezembro de 1961, José Dias Coelho, funcionário clandestino do PCP, seguia pela Rua dos Lusíadas. Cinco agentes da PIDE saltaram de um automóvel, perseguiram-no, cercaram-no e dispararam dois tiros. Um tiro à queima-roupa, em pleno peito, deitou-o por terra; o outro foi disparado com ele já no chão. Os assassinos meteram-no no carro e partiram a toda a velocidade. Só duas horas depois, quando estava a expirar, o entregaram no Hospital da CUF.»

«Artista plástico de mérito reconhecido, José Dias Coelho aderiu ao PCP com pouco mais de vinte anos e algum tempo depois passou a funcionário clandestino. Entre muitas tarefas que desempenhou, nomeadamente a de responsável pelo Sector Intelectual de Lisboa do PCP, da actividade de José Dias Coelho enquanto funcionário do Partido, sobressai o importante trabalho, realizado com Margarida Tengarrinha, relacionado com a falsificação de documentos de identidade necessários aos quadros clandestinos do Partido.»

«De todas as sementes deitadas à terra, é o sangue derramado pelos mártires que faz levantar as mais copiosas searas»: eis a legenda que José Dias Coelho escreveu na sua última gravura, criada um mês antes de ser assassinado, e representando o assassínio do operário Cândido Martins (Capilé) à frente de uma manifestação popular.»


Poetas e cantores - como Eugénio de Andrade e José Afonso - escreveram e cantaram belos poemas e canções de homenagem a José Dias Coelho.
O Cravo de Abril publica hoje um poema possivelmente desconhecido por muitos dos nossos visitantes.

É a nossa homenagem ao camarada José Dias Coelho.


VIAGEM ATRAVÉS DE UMA FATIA DE BOLO-REI


Corria o ano de 1961.
Estávamos à porta do Natal.

Eram quase duas horas da manhã
e eu perguntei-lhe
se queria comer alguma coisa.
Disse que sim. Mas que
estava com muita pressa.

Enquanto vestia a gabardina, trouxe-lhe
uma sanduíche de fiambre
um copo de vinho
uma fatia de bolo-rei.
Estava de pé
comia como se fosse a primeira vez
desde a infância.

- Há quantos anos
deixa cá ver
há quantos anos é que eu não comia
bolo-rei?
Este é bom, sabe a erva-doce
e a ovos.
(Caíam-lhe migalhas
aparava-as com a outra mão
em concha)

- Comes outra fatia, camarada?

- Isso não.
Estou atrasado já.
Mas se ma embrulhasses...

Através da janela
do quarto às escuras
fico a vê-lo atravessar a Rua da Creche
seguir pela Rua dos Lusíadas.

Nenhum de nós sabia
que estava já erguida a pirâmide do silêncio
à espera dele
num breve prazo.

Quando talvez o gosto do bolo-rei
mais forte do que nunca
tivesse ainda na boca.

Mário Castrim
(«Viagens», edição da Célula do PCP da Renascença Gráfica/Diário de Lisboa, para a Festa do Avante/77)

9 comentários:

Maria disse...

Hoje publiquei dois poemas a Dias Coelho.
Um da Alda Nogueira, o outro, o que tinha que ser.... José Afonso....

Abraço, Camarada!

GR disse...

Não conhecia este poema de Mário Castrim, como também desconhecia o poema da camarada Alda Nogueira!
Não consigo dizer em palavras a imensa comoção que senti ao ler tanta ternura e dor!

GR

João Filipe Rodrigues disse...

Muito bonito o poema.

Este post é uma recordação merecida.

E a PIDE matou pouco...

Anónimo disse...

Belo poema. Mas para alguns a PIDE matou pouco, todavia, há quem tenha nojo de ter tido familiares nesta polícia "científica".

samuel disse...

Bela homenagem!
Nunca é demais (nem suficiente)!...

Anónimo disse...

Fernando: Espero que não te importes com a cópia que vou fazer para o meu blogue. É que, além do mais, Dias Coelho, era de uma terra, Pinhel, muito próxima da minha que é Almeida. Ainda há poucos meses participei de uma homenagem ao pintor em Pinhel, com a presença da sua companheira, Margarida Tengarrinha. E um poema do Mário Castrim tem que ser partilhado com o maior número de pessoas possível.
m abraço

Anónimo disse...

A todos que, pensam e dizem, que a PIDE matou pouco.
É porque não lhes bateu á porta e, não lhes bateu á porta porquê?
A PIDE conhecia os amigos!
José Manangão

Fernando Samuel disse...

maria: eu vi, eu li... O da Alda eu não conhecia, ainda bem que o publicaste.

gr: isto comove-nos e dá.nos mais força, não é gr?

joão Filipe Rodrigues: «matou pouco». Pois.

samuel: exacto: «nunca é demais (nem suficiente).

aristides: não me importo nada, camarada. Pelo Dias Coelho e pelo Mário Castrim.

manangão: a PIDE conhecia os amigos e os inimigos: aos amigos pagava, aos inimigos matava.

Beijos e abraços para todos.

Anónimo disse...

Numa comemoração do Aniversário da Revolução de 25 de Abril, um militante do PCP, já muito idoso, avançava com a ideia que quando Dias Lourenço foi assassinado vinha ou ia para casa do Camarada Mário Castrim.
Esse camarada idoso por quem tenho muito respeito é o ribatejano, de Vila Franca de Xira, António Dias Lourenço.

Já agora numa desculpabilização do assassinato do José Dias Coelho um PIDE disse que tinha sido uma simples rixa, ninguém perguntou ao PIDE por que motivo demorou 2 Horas ao corpo chegar ao Hospital.....