POEMA

APONTAMENTOS PARA UMA CANÇÃO, MAIS TARDE


Um dia escreverei uma canção,
uma simples canção,
para os que aprendem geografia nos comunicados de guerra,
nas notícias dos jornais,
nos telegramas do estrangeiro...
para os jovens que aprendem nomes complicados
de pronúncia estranha
com o coração
com a esperança
com o desalento...
para os que, como eu,
e outros mais novos
sabem com os nervos onde fica Adis-Abeba e Guadalajara,
Guadalcanal, o golfo de Akaba, Birkenau e Dien-Bien-Puh...
para os que sabem tudo da mistificação de Munique
da destruição de Oradour
da configuração de Seul
da conspiração de Caracas
da reconstrução de Coventry
da punição de Nuremberga...

Um dia escreverei uma canção,
uma simples canção,
terrível como um campo de trigo incendiado,
ardente como os povos que resistem,
para os que sabem
o essencial de Granada - o nome de Federico,
de Istambul - o nome de Nazim Hikmet,
de Buchenwald, Drancy, Auschwitz, os nomes de Desnos
Max Jacob
Fondane
etc., etc.
centenas de etceteras
cada um correspondendo a um nome válido,
a um pássaro morto.

Uma canção sanguinária como a religião dos Tughs,
insólita como a erecção dos enforcados,
para os que ligam o nome dos generais ao número de cadáveres,
sabem os locais onde operam os construtores de ruínas,
sofrem cólicas diante dos placards
e regressam a casa, solitários,
para comer a sopa de mais uma derrota
em que não intervieram.

Uma canção selvagem como os caçadores de escalpes,
destruidora como um terramoto japonês,
para os que sabem de cada crime o ponto certo no mapa
e aprendem, cada manhã, novos nomes invulgares
que lhes rebentam os ouvidos
como se deflagrassem bombas dentro da «paz» que habitam.
(Nomes que os turistas não encontram nos roteiros de viagens
que as Agências lhes fornecem com o prazer enlatado.)

Um dia escreverei uma canção,
uma simples canção,
firme como as flechas da Morte,
para os jovens eruditos da Geografia
que sabem tudo sobre Hiroshima
e respiram - até quando? - ao ritmo de Oak Ridge.


Egito Gonçalves

4 comentários:

Graciete Rietsch disse...

Este poema é uma denúncia terrível de tantas atrocidades cometidas neste mundo. Mas tão lindo, tão maravilhoso!!!!
Um dia escreveria uma canção! Mas esta já nos diz tanto!

Um beijo.

samuel disse...

Que coisa!!!

Abraço.

Maria disse...

Soubesse alguém escrever esta canção...
Ou cantá-la, simplesmente...

Um beijo grande.

Fernando Samuel disse...

Graciete Rietsch: está escrita a canção que... escreverá um dia...
Um beijo.

samuel: dizes bem; que coisa!!!
Um abraço.

Maria: se eu fosse músico e cantor...
Um beijo grande.