HÁ QUARENTA ANOS - VINICIUS

«1969 é para Vinicius de Moraes um ano "português". Lisboa recebe-o entusiasticamente. aplaudindo-o com o máximo calor»: assim se diz na nota à 4ª edição de «O Operário em Construção e Outros Poemas», publicada em 1975, com selecção e prefácio de Alexandre O'Neill.

É certo que Vinicius tinha passado por cá em finais de 1968, a caminho de Itália, tendo então participado num serão em casa de Amália, onde também estiveram a Natália, o Ary, o Mourão-Ferreira - e desse serão nasceu o disco «Amália/Vinicius».
Mas foi em 1969 que o Poeta nos visitou como queríamos.

Recordemos alguns momentos dessa visita.
No dia 13 de Dezembro de 1969, no Teatro Villaret, em Lisboa, Vinicius - com Baden e Marcinha - realizam o seu segundo (ou terceiro?) espectáculo.
Um espectáculo inesquecível.
A dada altura, Vinicius falou da situação que então se vivia no seu País: no dia anterior, os militares fascistas que, com o apoio dos EUA, ocupavam o poder no Brasil há cinco anos, tinham instaurado o Ato Institucional Nº5 - o sinistro AI5 - que institucionalizava a censura, a repressão, a prisão, a tortura, o assassinato.
E o Poeta falou da tragédia que caira sobre o seu povo - comparando-a à situação que se vivia em Portugal.
Depois, leu o poema Pátria Minha, que Baden acompanhou dedilhando, no violão, o Hino do Brasil.
Mais tarde - aproximava-se o espectáculo do fim - chegou a notícia (que creio não viria a confirmar-se) de que o Chico teria sido preso.
E o Poeta falou do seu amigo... - enquanto a Marcinha chorava... e o público chorava...
Um espectáculo inesquecível.

Nos dias que se seguiram, o grupo faz mais uns tantos espectáculos - na boite Ad Lib, em Lisboa, e em várias cidades portuguesas: um êxito, em todo o lado.
Vinicius foi, então, muito criticado por alguns... críticos que achavam que poeta não deve fazer poemas para canções e muito menos ir a boite cantar e dizer poemas... enfim, os «argumentos» que, de facto, pretendiam (eles sabiam porquê...) menorizar a qualidade maior da poesia de Vinicius (como, mais ou menos por essa altura, fizeram - e continuam a fazer... - em relação ao nosso Zé Carlos).

A vinda de Vinicius a Portugal, fora antecedida, em Abril de 1969, pela publicação, pela Dom Quixote, do livro acima referido: «O Operário em Construção e Outros Poemas» - que foi, talvez, a primeira, ou uma das primeiras edições portuguesas de poemas de Vinicius.
O livro teve imediato sucesso: ainda nesse ano saíu uma 2ª edição, no ano seguinte, outra... e já lá vão creio que umas dez...
A 4ª edição - a de 1975 - teve enorme vantagem de vir aocmpanhada por uma «Carta-Prefácio Para Vinicius de Moraes», na qual o O'Neill fala precisamente desse «ano português» de Vinicius.
Trata-se de um texto que - mesmo indo este post já tão longo e com a consciência de que estou a abusar da vossa paciência - não resisto a deixar-vos aqui.

«Amigo:

Quando estiveste, da primeira vez, por aqui dando show, umas granfas (loiras e morenas notáveis, como diria Mestre Carlos, mas ganfas), comentando os preços da boate onde, em duas ou três sessões, te produziste com a tua turma, disseram ou fizeram dizer: «Quem não tem dinheiro, não tem Vinicius.» Vinicius, vícios... não ligues. Olha que elas dispunham de muito bago. Estavam era a ser desajeitadas na maneira de te homenagear. Algumas conheciam de ti o poeta encaixilhado no sério. Charmoso, mas, apesar de tudo, respeitável-respeitoso. Usavam o teu "Soneto do Amor Total" não como tabatière à musique, nem como máquina de pensar, mas como caixinha de arroubos, entre as muitas outras que sempre trazem na malinha, com coisinhas para pôr ou tirar dor de cabeça.
Dessas, uma quantas mostraram-se decepcionadas contigo por teres descido do livro à boate, do soneto ao samba. E fizeram constar a decepção, a ofensa que sentiam. Não ligues. Estavam mordidinhas de inveja perante a quantidade de liberdade que tu, em cada noite, produzias!
Marcus Vinicius, eu vi-te aquém e além palco, con-vivi-tigo. No Alentejo, que agora, mais do que nunca, ai de nós, é um adjectivo, vi-te, convivi-te no teu simplório convívio. Estavas em construção, como sempre não definitivo. Tua felicidade, teu riso mais riso, era entre pessoal amigo.
Há muita gente ainda por aí (tenho medo que aumente!) que de ti o que quer é o catorze, quer dizer o soneto, e rejeita teu outro meio de comunicar, que afinal é o mesmo: tocantar.
Perceba, por uma vez, essa gentalha, que o Vinicius poeta e o Vinicius sambista são da mesma igualha!
São
o operário
em construção.

Abração
Alexandre O'Neill
Lisboa, Nov. 75»

8 comentários:

Ana Camarra disse...

Fernando Samuel

Vinicius um génio, que tinha lá as suas coisas, mulherengo, alcoolico, um gentleman um homem que vivia apaixonadamente, só assim se pode comprender a magia dos seus poemas, eternos.

"O sal das minhas lágrimas de amor
Criou o mar que existe entre nós dois
Para nos unir e separar
Pudesse eu te dizer
A dor que dói dentro de mim
Que mói meu coração nesta paixão
Que não tem fim
Ausência tão cruel
Saudade tão fatal
Saudades do Brasil em Portugal

Meu bem, sempre que ouvires um lamento
Crescer desolador na voz do vento
Sou eu em solidão pensando em ti
Chorando todo o tempo que perdi"

Sáravá!

Beijos

Ana Camarra disse...

Fernando

Em 69 eu tinha dois anos.
Mas em 71, 72, a minha avó ensinou-me esta que eu cantava com requebros de femme fatal

" por falar em saudade onde anda você
Onde andam seus olhos que a gente não vê
Onde anda esse corpo
Que me deixou louco de tanto prazer
E por falar em beleza onde anda a canção
Que se ouvia na noite dos bares de então
Onde a gente ficava,onde a gente se amava
Em total solidão
Hoje eu saio na noite vazia
Numa boemia sem razão de ser
Na rotina dos bares,que apesar dos pesares,
Me trazem você
E por falar em paixão, em razão de viver,
Você bem que podia me aparecer
Nesses mesmos lugares, na noite, nos bares
A onde anda você?"

As coisas que me fazes lembrar, agora não me sai a música da cabeça!

Obrigado

Maria disse...

Lembro-me bem da passagem de Vinicius por cá... e deixo-te este poeminha:

Dialética

É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...


Um beijo grande

samuel disse...

Os "grandes intelectos" detestam ver os poetas conviver com o povo. Ainda os detestam mais quando o povo deixa e gosta...

GR disse...

Vinicius de Moraes foi/é, um génio.
Um grande poeta, um enorme compositor, amante (Sem Você), um boémio, um homem de consciência (Gente Humilde), por vezes um solitário (Procura-se um Amigo) mesmo que sempre bem acompanhado (Tomara), tantas vezes desiludido (O Desespero da Piedade), outras vezes confiante no futuro (Mundo Melhor).
O uísque o seu melhor amigo ajudava-o, libertando-o dos fantasmas verdadeiros, soltando-lhe a rouca mas tão melodiosa voz e como ele dizia: ”O uísque é o melhor amigo do homem. É o cachorro engarrafado.”
Vinicius morreu cedo, era também um homem de excessos, porque adorava viver.
Não conhecia este texto.

GR

GR disse...

Chico Buarque não foi preso.
A 18 de Dezembro 68, a polícia entrou em casa e levou para interrogatório, tendo saído nesse mesmo dia, ao fim da tarde, não podendo ausentar-se do país. O interrogatório feito pelo general Assunção, foi em torno da sua participação na Manif, “Passeata dos Cem Mil” e do disco Roda-viva.
A 3 de Janeiro de 69 vai para Itália com a esposa (Marieta Severo), a 28 de Março nasce a 1ª filha e em Abril desse mesmo ano Vinicius de Moraes vai a Itália e é padrinho de Sílvia Buarque da Holanda.

in Chico Buarque
Companhia das Letras
Edição Especial/1986

GR

Anónimo disse...

"E o operário disse NÂO!"
Revivi, outro dia na Mezzo, um concerto de Vinícius e Toquinho em França, nos nos 70. Apanhei o programa por acaso mas fiquei (mais uma vez!) deslumbrado.

Fernando Samuel disse...

Ana Camarra: como está à vista, é isso tudo que faz os grandes poetas.
E as coisas que tu me fazes lembrar?: há quanto tempo não «ouvia» essa...
Um beijo.

Maria: obrigado por este poeminha tão bonito.
Um beijo grande.

samuel: eles só se sentem bem lá em cima, muito em cima, no superior...
Um abraço.

GR: nem esperava de ti outra coisa que não fosse este vasto conjunto de informações e este entusiasmo pelas coisas belas...
Um beijo amigo.

Aristides: eles deixam-nos sempre deslumbrados: como se fosse sempre a primeira vez que os estamos a ver/ouvir.
Um abraço.