A TESE HÍBRIDA

Por Catarina Casanova





“Por isso, quando a pequena burguesia (pela voz dos seus  intelectuais radicalizados) se afirma anti-capitalista e socialista, imagina um novo modelo de <socialismo>, um socialismo sem o papel dirigente da classe operária, um socialismo em que ela, a pequena burguesia, possa sobreviver como classe, um socialismo à sua própria imagem...”.

(Álvaro Cunhal, in Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista, 1971)


Em 1940, Mao-Tse Tung teorizou sobre a “nova democracia” na China, dizendo que esta seria uma forma original de organização social e política na etapa da revolução democrática. Essa “nova democracia” caracterizava-se por ser um regime nacional com carácter transitório, em que o poder seria exercido “por diversas classes revolucionárias” (Mao-Tse Tung, 1940).
Esta tese continuou (e continua) a ter apoios em muitos partidos que se dizem comunistas. Em Itália, no PCI o conceito de “democracia progressiva” aparece com Togliatti e é desenvolvido posteriormente por Berlinguer defendendo-se uma espécie de evolução gradual do capitalismo para o socialismo. Por sua vez, em França, o PCF[1] no seu manifesto intitulado «Por uma democracia avançada, por uma França socialista» (1968), também conhecido por “Manifesto de Champigny”, defende que a classe operária deve ser aliada de “outras camadas sociais não capitalistas e menciona que “através de múltiplas acções de massas da classe operária e das mais largas camadas populares que a relação de forças sociais e políticas poderá́ ser modificada a favor da democracia e do socialismo” (“Por uma Democracia Avançada, Por uma França Socialista”, 1968).
Esta tese de maoístas e eurocomunistas revê aspectos essenciais da teoria marxista. Marx e Engels (1848) tinham referido no “Manifesto do Partido Comunista” que: “Os estados médios [Mittelstände] — o pequeno industrial, o pequeno comerciante, o artesão, o camponês —, todos eles combatem a burguesia para assegurar, face ao declínio, a sua existência como estados médios. Não são, pois, revolucionários, mas conservadores. Mais ainda, são reaccionários, procuram fazer andar para trás a roda da história. Se são revolucionários, são-no apenas à luz da sua iminente passagem para o proletariado, e assim não defendem os seus interesses presentes, mas os futuros, e assim abandonam a sua posição própria para se colocarem na do proletariado” (op. cit.).
Será que algo se passou entre a publicação do “Manifesto do Partido Comunista"  e estas revisões?
Parece-nos que não: a estrutura do modo de produção não se alterou, as relações de produção mantiveram-se, a dinâmica de proletarização da pequena burguesia não desapareceu e portanto a sua luta só pode ser para “assegurar, face ao declínio, a sua existência como estados médios” (op. cit.).
Parece continuar a ter toda a validade a tese do VI Congresso da Internacional Comunista que afirma que na actual fase de desenvolvimento do sistema capitalista o imperialismo gera instabilidade nas relações capitalistas (desde logo com choques inter-imperialistas), uma massa de “elementos sociais desclassificados” oriundos “das massas pequeno-burguesas, dos intelectuais e doutros meios sociais”, inclusivamente d“os meios operários, onde recruta os elementos mais atrasados” são a base de massas de políticas reacionárias e, se necessário, do próprio fascismo (Programa da Internacional Comunista adoptado pelo VI Congresso Mundial, 1928).
 Não há qualquer papel revolucionário a esperar por parte das classes intermédias na sociedade capitalista (ou ditadura da burguesia), como aliás vem sendo verificado desde o “Manifesto do Partido Comunista” (1848), e como a Internacional Comunista, no seu tempo, voltou a confirmar.
Deste modo, todas as teses sobre uma tomada de poder conjunta entre proletariado e sectores intermédios carecem de qualquer validade do ponto de vista não apenas teórico mas também da prática histórica[2].
Sem visitar o caso extremo em que os sectores intermédios foram bases de massas do fascismo, no caso português podemos atentar no comportamento das classes intermédias durante o período revolucionário de 74/75 e do seu partido de classe: o PS.
É certo que em determinadas circunstâncias as classes intermédias puderam apoiar reivindicações democráticas, sobretudo à medida que o aprofundamento da exploração e opressão dos trabalhadores comprometia as suas liberdades individuais. Contudo, a luta pela democracia pode muito facilmente nada ter a ver com a luta pelo socialismo (recordamos mais uma vez o exemplo português com a atitude do PS e do recentemente falecido Mário Soares). Há quem repita insistentemente sobre a existência de uma conhecida tese marxista-leninista que considera a luta pela democracia e pelo socialismo inseparáveis[3]. Em primeiro lugar trata-se de uma afirmação redundante. Em segundo lugar, de acordo com Lenine (1915), enquanto existir capitalismo todas as conquistas democráticas serão sempre incompletas e deformadas –   competindo aos comunistas – apoiando-se na democracia já existente – desmascarar o seu carácter incompleto e afirmando que a “base necessária tanto para liquidar a miséria das massas como para a completa e integral realização de todas as transformações democráticas” será “o derrubamento do capitalismo, a expropriação da burguesia” (Lenine 1915).  Faça-se notar que Lenine se refere a todo o capitalismo, e não apenas ao dos monopólios, e a toda a burguesia, pequena, média, e grande. A luta que o comunismo propõe é pela democracia dos trabalhadores, que resulta da transformação do modo de produção dominante. O capital, sabemo-lo desde Marx (ex: 1849), não é nem uma coisa nem um conjunto de pessoas: é uma relação social. Sem a liquidação dessa relação social, dessa forma específica de relação com os meios de produção e das classes entre si, não é possível construir qualquer democracia que não seja burguesa. Qualquer proposta desse tipo, ainda que se disfarce, como no exemplo maoísta ou eurocomunista, de tese revolucionária, é a de uma reforma “reaccionária” (para usar a expressão do “Manifesto do Partido Comunista”); procura permitir a sobrevivência da pequena burguesia como classe para lá do actual modo de produção, coisa que é impossível.
Outro aspecto que importa discutir é que em muitos textos eurocomunistas [e maoístas (Mao-Tse Tung, 1940)] fica claro que passam a existir “etapas intermédias” entre o capitalismo e o socialismo. Em alguns textos (veja-se o já referido “Manifesto de Champigny”, 1968) estas etapas não são caracterizadas como capitalismo, como revolução socialista ou como socialismo. Ora entre o capitalismo e o socialismo não existe nenhuma etapa, fase, patamar, nível degrau ou estágio. O socialismo, sendo a última forma económico-social classista imediatamente antes do comunismo, para que possa vingar, terá que esmagar a burguesia e acabar com as relações de produção capitalistas. Para o fazer terá que exercer o seu domínio político (via ditadura do proletariado). Portanto, para liquidar um Estado burguês tem que existir um Estado proletário. O socialismo pode ter recuos (veja-se a esse propósito a NEP) mas tudo o que seja falar de “fases” ou “etapas” fora de contextos históricos reais (que têm que ser caracterizados) não passa de um exercício de mera ficção (porque historicamente infundada), que apenas ilude os trabalhadores e os comunistas com a perspectiva de uma possível caminhada gradual e mais ou menos pacífica e dialogante para o socialismo. Se a etapa da “democracia avançada”, “democracia progressiva” ou “nova democracia” se situa no capitalismo (ditadura da burguesia), então a mesma é nada mais nada menos que uma reforma do próprio capitalismo uma vez que continuamos a viver no domínio político da burguesia. O facto desta etapa se chamar “democracia avançada”, “democracia progressiva” ou “nova democracia” não a torna menos capitalista nem representa uma forma evolutivamente gradualista rumo ao socialismo. Por isso, os comunistas do PCF, PCI ou PCE estão a defender a luta por uma reforma dentro do sistema capitalista e não pela revolução socialista (ou o socialismo).
Alguns falam de “relação dialéctica” entre estas formas de democracia (“avançada”, “progressiva” ou “nova”) e o socialismo e da não existência de uma separação estanque entre estas e o socialismo. Todavia, nenhuma “relação dialéctica” não sofística consegue enlaçar ou fazer a ponte entre a democracia capitalista e a democracia socialista. Como escreveu Lenine (1917): “A democracia para uma ínfima minoria, a democracia para os ricos - tal é a democracia da sociedade capitalista” – democracia, pois  truncada, miserável, falsa”. Na verdade a diferença entre capitalismo e socialismo é radical e qualitativamente distinta, tal como definida por Marx (1875) e Lenine (1917): o socialismo (a que Marx se referiu como a fase primeira da sociedade comunista) implica nada menos do que a apropriação do poder do Estado por parte dos trabalhadores e a subsequente eliminação da posse privada dos meios de produção pela burguesia. Do ponto de vista histórico estamos perante um verdadeiro alto. Se estas formas de democracia não implicarem, pelo menos, o domínio político do proletariado (com vista ao desaparecimento das relações de produção capitalistas), então a luta pelo socialismo fica na gaveta pois ela é impossível do ponto de vista prático.




[1] O PCF, à semelhança do PCI e do PCE, ao abraçarem o eurocomunismo desistem das concepções revolucionárias pois abandonam o socialismo como objetivo, abandonam o papel de vanguarda do partido operário, a perspectiva revolucionária da transformação da sociedade. Acabam por abandonar o marxismo-leninismo e as suas principais teses.
[2] Na década de 30 do século passado a Internacional Comunista discutiu a existência de interesses concordantes entre “classes e camadas” (atingidas nos seus interesses objetivos) especificamente para combater o nazi-fascismo via «frentes populares». Tais frentes foram portanto limitadas no tempo e no espaço e a um contexto muito particular de objectivos. Adicionalmente, tal unidade nunca colocou em causa a perspectiva antagónica de classes e nunca se aceitou a diluição os interesses da classe operária nos interesses da pequena burguesia.
[3] Não deixa de ser curioso que o texto eurocomunista do “Manifesto de Champigny” (1968) referia a “causa inseparável da democracia avançada e do socialismo” e que caberia ao PCF, “sem se substituir aos órgãos do Estado, às instituições representativas e às administrações”, “traçar em cada etapa as perspectivas do desenvolvimento socialista nos diferentes sectores da vida económica, social, política e cultural”. Portanto, estes capitulacionistas ideológicos defendem que cabe à vanguarda da classe operária – o Partido Comunista – ser uma espécie de observatório da qualidade da democracia burguesa.



Referências

Cunhal, A. 1971. Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista. Edições Avante!
Lenine, V.I. 1915. O Proletariado Revolucionário e o Direito das Nações à Autodeterminação. Obras escolhidas em seis tomos, Editorial Avante! 1986, T2, pp.272-78.
Lenine, V.I. 1917(1977). O Estado e a Revolução. Editorial Avante! (http://www.dorl.pcp.pt/images/classicos/t25t088.pdf)
Mao Tse Tung, 1940. A Nova Democracia na China. Yenan, 1 (https://www.marxists.org/portugues/mao/1940/01/15.htm)
Marx, K. 1849. Trabalho Assalariado e Capital. Obras escolhidas em três tomos, Editorial Avante! [Tradução de José Barata Moura e Álvaro Pina (https://www.marxists.org/portugues/marx/1849/04/05.htm)]
Marx, K. 1875 (2009). Crítica do Programa de Gotha. Editorial Avante! (https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/index.htm)
Marx, K. e F. Engels. 1848. Manifesto do Partido Comunista. Editorial Avante! (http://www.pcp.pt/sites/default/files/documentos/1997_manifesto_partido_comunista_editorial_avante.pdf)
Por uma democracia avançada, por uma França socialista. 1968 (http://aaweb.org/pelosocialismo/components/com_booklibrary/ebooks/2013-08-16%20-%20Manifesto%20Champigny.pdf)
Programa da Internacional Comunista adoptado pelo VI Congresso Mundial, 1928 (http://www.hist-socialismo.com/docs/ProgramaIC1928.pdf