É muito oportuna
a discussão que a camarada Catarina Casanova abriu a propósito do
eurocomunismo. E suscita o debate sobre um elemento decisivo do processo que
levou partidos revolucionários a enveredarem por uma via de legalismo e
pacifismo que, em última análise, é um regresso aos métodos e objectivos dos
próprios partidos social-democratas. Como puderam partidos saídos da ruptura
com o legalismo e o reformismo da social-democracia, volvidos escassos quarenta
anos – em geral, uma irrelevância do ponto de vista histórico –, tornar-se nada
menos que partidos tão reformistas e tão legalistas como os seus antecessores?
O que explica a sua cooptação e
assimilação pelo aparelho partidário da burguesia?
Importa retomar
elementos centrais da noção marxista-leninista de partido para compreender a
extensão e profundidade desta questão. No Esquerdismo:
Doença Infantil do Comunismo (livro muito mais citado do que lido...) Lenine escreveu que “as classes são, geralmente e na maioria dos casos (pelo menos nos
países civilizados modernos), dirigidas por partidos políticos; que os partidos
políticos são dirigidos, via de regra, por grupos mais ou menos estáveis,
integrados pelas pessoas mais prestigiosas, influentes o sagazes, eleitas para
os cargos de maior responsabilidade e chamadas de chefes”. Mas logo acrescenta
que “no fim da
guerra imperialista e depois dela” “manifestou-se em todos os países com
singular vigor e evidência o divórcio entre "os chefes" e "a
massa". A causa fundamental desse fenómeno foi explicada muitas vezes por
Marx e Engels, de 1852 a 1892, usando o exemplo da Inglaterra.
A situação monopolista, desse país originou o nascimento de uma "aristocracia
operária" oportunista, semi-pequeno-burguesa, saída da "massa".
Os chefes dessa aristocracia operária passavam-se frequentemente para o campo
da burguesia, que os sustentava directa ou indirectamente”. No mesmo sentido
vão as palavras do mesmo Lenine n’O
Oportunismo e a Falência da Segunda Internacional, que “o carácter relativamente "pacífico"
do período de 1871 a 1914 alimentou o oportunismo primeiro como estado de espírito, depois
como tendência, e finalmente como grupo ou camada da burocracia operária e dos
companheiros de jornada pequeno-burgueses. Estes elementos só podiam submeter o
movimento operário reconhecendo em palavras os objetivos revolucionários e a
tática revolucionária. Eles só podiam conquistar a confiança das massas através
da afirmação solene de que todo o trabalho "pacifico" constitui
apenas uma preparação para a revolução proletária. Esta contradição era um
abcesso que alguma vez haveria de rebentar, e rebentou”. Ora, o que explica que
de organização das “pessoas mais prestigiosas, influents e sagazes” no seio de
uma classe, um partido degenere numa organização oportunista, dirigida por
semi-pequeno-burgueses, enganando os trabalhadores e conduzindo-os a becos sem
saída?
Marx estabelecera já, com cristalina clareza, as tarefas
específicas dos comunistas no movimento operário: ao dizer
que “os comunistas são, pois, na prática, o sector mais decidido, sempre
impulsionador, dos partidos operários de todos os países; na teoria, eles têm,
sobre a restante massa do proletariado, a vantagem da inteligência das
condições, do curso e dos resultados gerais do movimento proletário”, Marx
define, no fundo, o conceito e a função da vanguarda: impulsionar a luta com
decisão, determinação, no campo da prática, guiado pela teoria revolucionária,
que é no fundo o acervo de conhecimento acumulado pelo proletariado de todo o
mundo. Este movimento impulsionador, é devido sublinhar, tem como objectivo
dotar o proletariado da capacidade para combater de forma independente pelos
seus interesses de classe: os comunistas organizam o proletariado para que seja
o próprio proletariado a tomar em mãos a sua libertação, a erguer as suas
estruturas de organização popular, a conduzir o combate de morte contra o seu
inimigo de classe, a triunfar enfim sobre ele. Isso não quer dizer que os
comunistas devam afastar-se do proletariado finda a sua tarefa organizativa
inicial: mas existe um risco real de tornarem o seu esforço impulsionador numa
tutela.
Lenine, no Que Fazer?, escreve que os operários “não podiam ter ainda a consciência social-democrata. Esta
só podia chegar até eles a partir de fora. A história de todos os países atesta
que, pela próprias forças, a classe operária não pode chegar senão à
consciência sindical, isto é, à convicção de que é preciso unir-se em
sindicatos, conduzir a luta contra os patrões, exigir do governo essas ou
aquelas leis necessárias aos operários etc. Quanto à doutrina socialista,
nasceu das teorias filosóficas, históricas, econômicas elaboradas pelos
representantes instruídos das classes proprietárias, pelos intelectuais. Os
fundadores do socialismo científico contemporâneo, Marx e Engels, pertenciam eles próprios, pela sua situação
social, aos intelectuais burgueses”. A formulação propriamente política das
suas aspirações, e portanto a construção de uma organização revolucionária, não
é, por razões históricas e sociais evidentes, possível ao proletariado. Mas os
comunistas que os auxiliam nessa tarefa não são tutores dessa classe: quando
Lenine diz que os operários afirmam “queremos saber tudo o que os outros sabem,
queremos conhecer em detalhe todos os aspectos da vida política e participar activamente
de cada acontecimento politico”, sendo função dos intelectuais
social-democratas de então fornecer conhecimentos politicos aos trabalhadores,
para que o pudessem fazer, pronuncia-se determinadamente contra um elemento
fatal que pode advir desta fusão entre os intelectuais que levam a teoria
revolucionária ao proletariado e esse mesmo proletariado – a tutela do
movimento operário por uma direcção de intelectuais pequeno-burgueses, ou de
dirigentes comprometidos com o poder burguês. O fornecimento de conecimento politico
é o único modo que existe de evitar situações deste tipo.
Nos partidos
comunistas onde se operou o triunfo do eurocomunismo, a degenerescência só foi
possível após o esvaziamento do trabalho de formação política do proletariado,
pela rotinização da luta económica, pelo rebaixamento progressivo das formas de
luta, pela transigência aos poderes instituídos, pela institucionalização e a
profissionalização da conciliação de classes numa clique dirigente
inquestionada e comprometida com a dominação. Sem um proletariado que a vigie,
a direcção do movimento popular pode, sobretudo se enquadrada nas estruturas da
legalidade e do poder burguês, ser facilmente cooptada como perna esquerda do
regime. E só um proletariado politicamente educado pode assegurar essa
vigilância dos seus dirigentes, numa dialéctica permanente onde qualquer quebra
determina, cedo ou tarde, um triunfo do desvio. Porque a burguesia nunca cessa
de bombardear os partidos e organizações do proletariado com a sua ideologia. E,
como nos partidos onde triunfou o reformismo, por vezes consegue.
1 comentário:
Uma pedrada no charco o teu artigo, João, com que concordo e saúdo!
Falta "dar nome aos bois."
Talvez este artigo te possa encorajar ...
Um abraço.
https://franciscomartinsrodrigues.wordpress.com/2016/05/12/receitas-para-controleiros/
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