memórias. ou ensaio para uma biografia da infância

Haverá um dia em que entrarás novamente, às seis da tarde, vindo de Lisboa e do trabalho, pela porta da casa de Cascais para me levares a ver o mar, os comboios e as gaivotas. Desceremos novamente, entregues um ao outro e à comoção profundíssima de sermos amigos, a avenida que nos separa da casa dos frangos e da rua direita, onde mais tarde, compraremos o jantar. Hoje pode ser sem picante, que sei que preferes. E ainda que não soubesse, talvez seja apenas esta a desculpa de me não saberes ainda crescido e capaz de o comer sem chorar ardor. Olha tio, esta tarde joguei à bola entre os pinheiros que cercam a nossa casa. As pedras têm um cheiro bom como só a infância sabe distinguir, e as agulhas dos pinheiros são ânsias da idade que há-de vir mas que ainda não tenho e que me permita afastar-me, um pouco mais, do reino que guardaste para mim na razoabilidade da tua preocupação. Sabes, hoje vi passar a porteira do prédio vizinho. Porque têm um olhar tão carregado os pobres que conheço? Levava na mão um balde cheio de restos de peixe. Quando passou só não tapei o nariz porque tive medo que reparasse. Depois aproximaram-se gatos. Muitos. Vinham talvez partilhar a condição da fome. E da solidão, ainda que muitos e todos juntos. Os gatos não falam, pelo menos de forma a que a gente entenda logo e, talvez por isso, sinto-os bichos muito sozinhos. Mas haverá um dia em que te veja, regressado da cidade grande, a sair do autocarro que te traz sempre do comboio à avenida infante dom Henrique. Mala dos livros na mão direita, gabardine ou casaco leve de verão deitado no braço esquerdo. Boina basca cobrindo a careca e deixando adivinhar a alvura dos cabelos que te restam. Nesse dia, vou descer de quatro-em-quatro, como sempre fazia, as escadas do prédio para te ir apanhar à rua, junto da terra arenosa e do cheiro a praia que sempre abunda porta fora. (...)
lains de ourém

8 comentários:

Maria disse...

Ternurento. Tão bonito...

Beijinho, António.

Justine disse...

Belíssimo texto, a trazer-nos ecos nostálgicos!

O Puma disse...

Uma ternura de memórias

Olinda disse...

Gostei.Visualisei todas as imagens descritas no texto.

Graciete Rietsch disse...

Texto lindíssimo. Comovente.

Um beijo.

Maria João Brito de Sousa disse...

Ficamos aquecidos por dentro, ainda que solitários, como os gatos... :)

GR disse...

Texto belíssimo, com o timbre já inconfundível de António Galamba.

BJS,

GR

Sérgio Ribeiro disse...

Gostei muito. Por tudo. Até porque estou a ver o teu tio-avô. Reconhece-lo numa fotografia de grupo, de 1935, 'inda eu não tinha nascido (mas quase...), e ele era estudante de direito?
Não pares de escrever, ainda que não publiques tudo.

Grande abraço