lembrando o amigo morto

faz cinco anos, não tarda muito, e «vi» morrer um amigo. Violentamente! Zé Balão era o porta-estandarte no Grupo Coral »Os Trabalhadores» de Ferreira do Alentejo. Ferido, profundamente, pela notícia, embrulhei as lágrimas no papel e nas letras que agora partilho. Porque há homens, desculpem, homes, tão ternurentos que ficam sempre referência nas vidas de quem com eles privam. Faço deste blog a ponte entre amigos que aqui nos visitam, e este amigo que bem gostava que tivessem conhecido.
Aqui fica pois a carta que ele nunca poderia ter lido, a não ser que me tenha adivinhado entre os cigarros partilhados.


Carta ao amigo morto:

tinhas alcunha de criança... redonda como os olhos amêndoa, azeitona, de menino ternurento que agora se findou. zé balão. vejo-te, recordo-te agora descendo a rua que te leva, que te traz ao Cante. eras o porta-estandarte! mãos grossas, dedos bons como o coração das coisas ternas. e o orgulho que tinhas dos amigos na bandeira que erguias. tua pobreza humilde tinha talvez a resignação das flores em terreno ácido. recordo-te debruçado no balcão - talvez maior que tu (não me lembro, ofuscado que estava no teu sonho!) - da tasca do lota. enganando o luto pela morte da tua mãe. com goles de passarinho (porque te associo sempre eu às coisas pequenas, meu homem pequenino, meu amigo grande?) assobiando no copo de traçado as injustiças que outros obrigaram a carregares às costas. Nunca te disse, nunca meu amigo morto, meu irmão vivo, nunca te disse mas foste a única coisa pela qual tive pena de deixar de fumar. lembra-me tanto balão. lembras-me tanto. os dentes que faltavam abrindo-se no negro da tua pobreza, dedos esticados - que era uma das tuas formas de me abraçar -"oh tóino, dá aí um dos teus cigarrinhos, já feitos." E dizias "já feitos" para que lembrasse que tinhas uma onça, assim eu dos teus quisesse. e era um dos nossos momentos profundos, na tua profundidade de homem simples. passava-te o maço para as mãos mas o lume saía das minhas... ver-te aconchegado à chama pequenina - oh momentos da nossa intimidade- ...
vou agora fazer-me à estrada, percorrer os quilómetros que separam as nossas diferentes condições. e choro. choro profundamente, um choro convulso, de boca hiante como a tua fome de menino. opróbrio da tristeza, a tua morte. fico por aqui. vou em direcção à planície que - também tu - me fizeste amar.
Cantaste-me um dia:« eu sou devedor à terra/ a terra me está devendo/ a terra paga-me em vida/ eu pago à terra em morrendo». Vou ajudar-te na tua dívida. carregar-te as tábuas. atirar-te à cova. calcar-te a terra, como quem tapa um amigo para a noite. depois regresso a casa e em tua homenagem planto um limoeiro. o seu fruto rima contigo. limão. meu bom amigo. zé balão.


Lisboa, 10 de julho de 2007
tóino sérgio

6 comentários:

Maria disse...

Escreves com tanta ternura, António.
Emocionaste-me e agora nem vejo o teclado. não digo mais nada. mas abraço-te, muito.

Graciete Rietsch disse...

Tanta coisa nos faz chorar. Mas esta carta desencadeia uma torrente de emoções que só gente como vós consegue criar.

Um beijo.

trepadeira disse...

Escreveste todas as palavras,só me deixas um abraço,solidário.

mário

cid simoes disse...

Este texto ajudam-nos a RESISTIR. Obrigado!

Olinda disse...

Quem expoe assim com tanta emoçao,este sentimento tao profundo de amizade,possui um coraçao do tamanho do mundo.

O Puma disse...

Abraços

sem palavras