POEMA

PROVAVELMENTE


Provavelmente
não terei a força, o verbo, o tamanho para falar duma revolução
que rebentou no coração daqueles que, desde o primeiro vagido, a desejaram.

Provavelmente
esquecerei nomes, trocarei datas, falarei dos heróis que o não foram
e dos cobardes que tiveram a coragem de não puxar gatilhos,
de permanecerem poetas e não matarem
ainda que com essa negação da morte ficassem
com os corpos presos, que a alma não.

Provavelmente
louvarei demasiado os que me são queridos, cantarei as paisagens
onde nasci e chegarei mesmo ao despudor de gritar
que o Alentejo é o mais lindo país do mundo,
que uma papoila vermelha floresce diariamente
nos dedos dos que trabalham a terra.

Provavelmente
deixarei nas margens deste recado essoutros que em Marços
e Setembros saíram para a rua agarrados à estrela da manhã
para com ela (somente com ela) defenderem a liberdade.

Provavelmente
não saberei pronunciar os nomes das crianças
que num mês de Abril inventaram novos símbolos,
debruaram de cravos as redacções escolares, as paredes dos jardins,
os troncos dos abetos, e inundaram com as aguarelas da ternura
os olhos dos homens cansados.

Provavelmente
e porque não? direi que vi soldados vestindo a farda que o povo usa,
essa camisa lavada e branca dos nossos irmãos operários,
camponeses, trabalhadores de todos os misteres.

Provavelmente
trocarei as notas à melodia que semeou o luar, desvirtuarei
a cor da baioneta que defendeu o sol, não saberei agarrar
o espanto das mãos que seguravam o vento como quem
agarra essas bandeiras de carne a que chamamos filhos.

Provavelmente
não citarei nomes de capitães, dragonas de almirantes,
siglas dos partidos, as multidões dos comícios, as cores
dos panfletos, o eco dos gritos que rebentaram a veia tensa
deste quase meio século que sufocou o pulmão
da nossa Pátria sempre adiada.

Provavelmente
só vos falarei dum Homem com rosto de homem, palavra
de homem, o gesto simples do Homem simples e sincero
que todos esperámos na lonjura da esperança,
como o Criador esperou o nascimento do mundo.

Provavelmente
escreverei: Vasco Gonçalves.

Provavelmente
acrescentarei: - Por aqui passou um Homem!


Eduardo Olímpio
(Fevereiro de 1976)

10 comentários:

alex campos disse...

Provavelmente um belo poema.

Um abraço

alex campos disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Maria disse...

Provavelmente acabaria a leitura deste poema a chorar. Como me chateia ser tão previsível...

Quanta saudade do Homem...

Um beijo grande

GR disse...

Provavelmente é, um dos mais belos e sentidos poemas.

(Com toda a firmeza direi, as aves voam rápido no dia da Liberdade!)

Bjs,

GR

Nelson Ricardo disse...

A minha idade não me permitiu viver(ou sequer existir) o período da Revolução, mas olhando para esse período dourado da história do nosso país, Vasco Gonçalves é uma figura que se destaca. Não só como líder, mas acima de tudo como representante do lado do povo que sempre tinha lutado contra o fascismo e que queria um Portugal novo e independente de interesses externos e capitalistas.

Depois vieram os Soares e os Eanes e os Sá Carneiros e essa maltosa que durante um par de anos diziam socialismo e democracia a cada passo e meio que davam, para mais tarde nos retirarem tanto um como a outra.

Muito teremos de passar até encontrarmos alguém com a verticalidade moral e ideológica de Vasco Gonçalves na governança deste país.

Falei com comunistas e revolucionários que tinham vivido o período pós-25 de Abril e nota-se a alegria e saudade que falam desses dias, em que o povo era de facto quem mais ordenava, em que a democracia era um sistema político onde o povo tinha um escrutínio real sobre o governo e demais instituições, em que os trabalhadores se organizavam e 'formavam' uma revolução. Lembro-me também do desalento no rosto deles quando falavam de quando todo esse período se desvaneceu e nasceu a democracia como hoje a conhecemos. Democracia representativa. Democracia das elites. Democracia burguesa.

Perguntei-me o que teria levado ao afastamento tão massivo e brusco do povo do processo democrático. Vendo um documentário na RTP Memória sobre o Portugal "democrático", ouvi a primeira declaração de Sá Carneiro no parlamento, após ter sido eleito. Dizia com pompa, que a ordem tinha voltado a ser restabelecida e que o povo voltaria a intervir no rumo do país dentro de quatro anos para julgar o mandato do governo.

Foi aí que percebi que a democracia como idealizada em Abril foi posta para o lado. A implantação definitiva da democracia burguesa estava finalizada.

Não vivi Abril, mas como anti-capitalista, democrata e comunista que sou espero viver outro período semelhante. E que desta vez o povo e a classe trabalhadora tenham a vitória final sobre o Capital.

oasis dossonhos disse...

http://aguasdosul.blogspot.com/2009/04/35-anos-depois-o-povo-saiu-rua.html

saudações fraternas

Luís

samuel disse...

E o que parecia improvável, acontece.
Vasco Gonçalves permanece vivo no coração de milhares de portugueses, no lugar onde se guardam os irmãos, amigos e companheiros, enquanto os seus inimigos apenas sobrevivem na memória... quase todos com o rótulo de traidores e canalhas.

Abraço

Ana Camarra disse...

Improvavelmente, apesar de tudo o que tentaram para denegrir a imagem do Homem integro e inteiro que foi Vasco Gonçalves, continua a ser recordado e acarinhado.
Já agora o seu "desgoverno" no terrivel "Gonçalvismo" coincide com a a época em que os portugueses viveram melhor com pão, a saude, educação e habitação...

beijos

amigona avó e a neta princesa disse...

Provavelmente o melhor texto que hoje li...obrigada...muito obrigada...

Fernando Samuel disse...

Alex campos: provavelmente...
Um abraço.

Maria: Vasco é Abril.
Um beijo grande.

GR: as aves sabem o seu caminho: é o caminho de Abril...
Um beijo.

ComRevDe: viverás (viveremos) sem dúvida Abril de novo.
Um abraço, camarada.

oásis dossonhos: um abraço de Abril.

samuel: nada evidencia mais a dignidade do que confrontá-la com a falta dela...
Um abraço.

Ana Camarra: é isso que eles odeiam nele: não ganharam para o susto...
Um beijo.

amigona avó e a neta princesa: um beijo de Abril.