Primeiro-Mundismo e Reformismo
O mundo saído da II Guerra Mundial era um mundo irreconhecivelmente diferente do que existira antes dela. O campo socialista estendia-se de Berlim a Pequim, os partidos comunistas tinham incomensurável peso social pela sua determinante participação na resistência antifascista, a causa do socialismo recolhia a simpatia e a militância de milhões de seres humanos em todo o mundo. Só por tolice a burguesia teria a veleidade de querer manter os trabalhadores nas condições de dominação e exploração dos anos 30: importantes concessões teriam de ser feitas, e foram-no. Os trinta anos que se seguiram à II Guerra Mundial representaram, de muito longe, o maior período de prosperidade material que o Ocidente algum dia assegurou às classes dominadas da sociedade.
Houve uma contrapartida, primeiro implícita e depois explicitada e consagrada em textos e programas políticos, para estas concessões: o abandono de qualquer pretensão revolucionária pelo movimento popular. Não foi fácil impor este caminho, mas ele acabou por chegar à hegemonia ao fim de algumas décadas de esforço. O apoio prestimoso de dirigentes kruschevistas na URSS e a progressiva capitulação dos principais partidos da Europa Ocidental às teses do chamado eurocomunismo. Assim se gerou um caldo de cultura que levou sucessivas gerações de activistas políticos, sindicais, dos movimentos sociais da mais variada ordem por toda a Europa, a considerarem que havia sempre uma saída para as suas aspirações dentro da legalidade burguesa. Por sinal, aliás, a própria noção de «legalidade burguesa», de «democracia burguesa», de que existiria um conteúdo de classe do regime político vigente e não apenas uma «legalidade democrática» suprassocial e neutra, passou a fazer parte do pensamento hegemónico. Ainda hoje, quando ouvimos os políticos e activistas reformistas a falar, é notório que estão convencidos disto.
Há um problema subsidiário deste: o reformismo é, à falta de melhor palavra, um primeiro-mundismo. Não se quer negar com isto que fora dos países ocidentais não medraram tentações e até experiências reformistas, mas as veleidades progressistas, mesmo as mais incipientes, foram, até aos dias de hoje, recebidas com a hostilidade mais absoluta, com sabotagem, patrocínio de golpes de Estado, invasões militares, bloqueios económicos, sanções da mais variada ordem, etc. Todas foram derrotadas até hoje, ou estão sob fortíssima pressão para virem a sê-lo, e nenhuma delas levou a condição de vida dos trabalhadores para o que quer que se assemelhe ao padrão de vida europeu ou norte-americano. Também por isso, nos países ocidentais, instituiu-se como em mais nenhum lado a crença generalizada - e de resto, sibilinamente, racista - de que tais pressões e ingerências jamais aconteceriam, de que o nível de vida nunca desceria de determinado patamar, de que se tinha dado um salto qualitativo e atingido uma soma de conquistas irreversíveis em matéria de democraticidade dos regimes políticos e protecção quer social quer económica das classes exploradas desses mesmos países. Quando, ante a crise que se arrasta sem fim à vista desde 2008, a burguesia toma decididamente a ofensiva para esmagar os seus direitos sociais como uma bota cardada esmigalha um castelo de cartas, perante os gritos entre o histérico e o impotente de apelo ao respeito pela legalidade, o direito, a decência, a justiça, ou outro expediente moral qualquer, conseguimos ouvir as gargalhadas que vêm das chancelarias. E percebemos como este reformismo primeiro-mundista está absolutamente desarmado e impreparado para a ofensiva que por aí vem, e da qual ele ainda não viu nada.
É pois contra o peso-monstro de mais de 70 anos de legalismo, de pacto social, de conformidade com os preceitos legais no desenvolvimento da luta, contra o uso da luta de massas como forma de pressão e não como instrumento para arrancar conquistas ao inimigo - é contra o reformismo que, por toda a Europa, importa fazer a guerra. Não apenas porque o reformismo é a negação, irracional, de uma verdade evidente - a de que nenhuma classe dominante aceita por bons argumentos ceder direitos às classes dominadas, e muito menos ceder o seu lugar e terminar com a exploração. A luta contra o reformismo é, já hoje, a luta contra uma concepção do mundo em que se considera que as sociedades ocidentais têm uma qualquer forma de «excepcionalidade» que as torna imunes a determinados graus de degradação das condições de vida de quem trabalha, como se a burguesia fosse ter mais piedade de um trabalhador alemão ou holandês do que de um marroquino ou senegalês. É na crença em que a primeira coisa pode acontecer que repousa a rejeição de qualquer discussão que não desemboque numa qualquer forma de legalismo, na redução de tudo a bons argumentos, a boas estratégias de comunicação, a uma qualquer maneira de, sem pisar o risco da legalidade, convencer o outro lado, ou no máximo exercer sobre ele a devida pressão moral, a ser bondoso e a conceder. Isso nunca funcionou em lugar nenhum e também não vai resultar aqui, muito menos quando a correlação de forças à escala planetária é de tal maneira desfavorável às forças progressistas. O esforço de demonstrar esta situação e munir as massas contra as ilusões reformistas é a nossa tarefa fundamental.
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3 comentários:
O mundo no pós-guerra
A “caracterização” que fazes do pós-guerra não consegue ilustrar o que então se passava.
Dizes que o socialismo era abraçado com verdadeira simpatia e ardor pelas classes trabalhadoras.
De repente, porém, tudo muda a partir dos anos de 1980; a correlação de forças altera-se e o imperialismo passa à ofensiva. Como foi isso possível? Não te interrogas sobre esta questão chave.
À vista do que sabemos hoje, deixas por colocar as seguintes questões:
Que “socialismo” era esse que as massas europeias “abraçavam” com tanto “ardor”?
Que curso estava a seguira ideia de revolução social na cabeça dos trabalhadores?
Que tipo de sindicalismo se praticava: de classe ou de colaboração de classes?
A vitória dos vietnamitas em 1975 foi o prosseguir das revoluções russa e chinesa ou o canto do cisne desse período revolucionário?
A independência das colónias representou um passo mais na via do
socialismo ou ficou-se por uma transição do regime de dominação colonial para o regimebde dominação imperialista de hoje?
O que prevaleceu nos 70 anos decorridos desde o fim da segunda Grande Guerra: o socialismo ou o capitalismo?
Para se perceber a evolução das coisas, importa vê-las por dentro e não apenas pelas manifestações exteriores.
À saída da segunda Grande Guerra todos partidos comunistas dos principais países europeus eram reformistas.
Na Europa, a ideia de revolução social foi gradualmente varrida da cabeça dos trabalhadores e substituída pela aceitação de um progresso gradual no quadro do capitalismo.
O sindicalismo dominante aceitou um pacto social entre capital e trabalho, abandonando a linha de classe contra classe.
No plano mundial, a revolução social em cada país ficou subordinada ao jogo das potências e ao alinhamento por um ou outro campo.
Qual foi a condição material em que assentou esta evolução?
Nos EUA, bem como na Europa e no Japão sobre os escombros da guerra, dá-se um novo surto (vertiginoso) de desenvolvimento capitalista. Isso permite à burguesia não só dispor de meios para melhorar as condições de vida das massas, mas também para apresentar o “progresso capitalista” como a solução para os problemas sociais e declarar portanto caduca a ideia de revolução e de socialismo.
Mais: a recuperação capitalista do pós guerra não foi só económica. Ela arrastou consigo enormes transformações sociais: o crescimento nunca visto das classes médias e da aristocracia operária, criando uma larga base pequeno-burguesa que corporizou o reformismo e o entendimento de classes, e constituiu, por décadas, o sustentáculo dos regimes burgueses.
Foi tudo isto que contribuiu para a gradual mudança de relação de forças, a qual saltou à vista nos anos 1980. É tudo isto que é preciso ter em conta para explicar a passagem do “ardor das massas pelo socialismo”(ontem) para o descrédito e a rejeição do socialismo (hoje).
As conquistas sociais
Falar do Estado Social na Europa do pós-guerra como uma conquista “imposta pelas classes trabalhadoras” é paleio social-democrata e aí, estamos de acordo.
É que esses reformistas empedernidos, para dar crédito à ideia, socorrem-se de Lenine: o Estado Social seria uma das tais “reformas que são subproduto das revoluções” .
Mas desde logo cabe perguntar: quais foram as revoluções havidas em França, na Alemanha, em Itália, na Escandinávia, na Suíça, na Holanda, etc. de que o Estado Social tivesse sido o subproduto? Simplesmente, não existiram, o que só por si diz alguma coisa sobre a natureza da dita reforma.
Com efeito, a afirmação de que o Estado Social foi “imposto” pelas classes trabalhadoras é altissonante, mas é apenas uma meia verdade. A parte da questão que fica escondida é esta: o progresso material então obtido pelas classes trabalhadoras foi conseguido a troco da sua pacificação política, ou seja, nada de revoluções.
O pacto social, atrás referido, obrigava o capital a melhorar regularmente as condições de vida das massas e, em troca, as massas contribuíam com o seu trabalho ordeiro para o progresso do capital.
O sucesso da recuperação económica do pós guerra deve-se, pois, em grande parte, a esta conjunção de vontades — conduzida não apenas pelos partidos burgueses social-democratas no poder, mas também pelos partidos e sindicatos que representavam a massa trabalhadora.
Os interesses de classe dos trabalhadores foram reduzidos à reivindicação económica no quadro do sistema capitalista, tendo por efeito uma completa
despolitização das massas no que respeita aos seus interesses de classe.
E é isso que permite perceber que, ao fim de 40 anos de “progresso”, os trabalhadores se vissem desarmados quando a burguesia decidiu, nos anos 80 — empurrada pelo agravar da crise do capitalismo, ou seja, pela necessidade de recuperar a taxa de lucro - pôr fim ao pacto social e dar cabo das “conquistas”.
Mudança da relação de forças
Se ignorarmos as mutações económicas e sociais que se davam no interior
do capitalismo ocidental e atribuirmos a mudança na relação de forças ao “fim do dito campo socialista”, explicando a ofensiva dos “neo-liberais” por essa mudança na relação de forças, caímos no absurdo de que a ofensiva neo-liberal é um produto da queda do Muro de Berlim e da desagregação do Bloco de Leste.
Tudo se jogaria portanto na chamada “geoestratégia” - nada na luta de classes, nada nas transformações sociais, nada na base material do sistema capitalista.
(Registe-se, à margem, que esta ideia é, em tudo, a que os partidos revisionistas defendem. Neles percebe-se que assim seja, uma vez que passaram 70 anos a ver o mundo em função do confronto de blocos e continuam hoje a ver a luta de classes apenas na sua função reivindicativa. Num marxista, porém, não se percebe.)
Mas a tese do Muro de Berlim, chamemos-lhe assim, tem à partida uma dificuldade de calendário: é que o início da ofensiva dos neo-liberais (Thatcher no Reino Unido, eleita pela primeira vez em Maio de 1979, e Reagan nos EUA, na presidência em Janeiro de 1981) data do começo dos anos 1980 e a desagregação do Leste europeu e da URSS dá-se em 1989-1991.
Como é que a queda do Muro pode então explicar uma coisa iniciada 10 anos antes? Não explica.
De novo, temos de entrar na análise do que se passou no mundo capitalista vencedor da guerra, no mecanismo do seu sucesso e da sua expansão. Aí, veremos que depois de uma fase de crescimento impetuoso (até ao início dos anos de 1970) segue-se um processo gradual de perda de velocidade com quebra nas taxas de acumulação.
O fruto de 30 anos de expansão e de crescimento foi, como Marx se fartou de dizer, o limite do próprio crescimento (“Quanto mais o capital está desenvolvido, mais ele surge como um obstáculo à produção” - Manuscrito de 1857-1858).
Quer dizer, a expansão do pós-guerra terminou em crise - que se declarou em toda a sua força no colapso de 2007-2008 e se arrasta até hoje. Foi esta mudança vinda de dentro que, em primeiro lugar, forçou o capital a mudar de política e a desencadear o ataque às benesses do Estado Social, sob a bandeira do neo-liberalismo.
Esta questão, que parece não te preocupar João, é decisiva. Com efeito, esta crise sem fim à vista fez desmoronar o castelo (material, social, ideológico e político) de “progresso contínuo” com que o capitalismo do pós-guerra debelou as aspirações revolucionárias que cresceram na primeira metade do século XX.
Por isso defendemos , com base na observação da própria evolução do
capitalismo de hoje (e não em considerações de duvidosa “geo-estratégia”), que a actual crise cria condições para um novo ciclo revolucionário - e que portanto se coloca na ordem do dia a necessidade (que agora tem outras possibilidades práticas) de reerguer a luta anticapitalista das massas trabalhadoras.
Estamos de acordo?
Um abraço
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