Recebida apoteoticamente por todos os órgãos da imprensa, todos os comentadores, todos os partidos, e todas as forças sociais empenhadas numa resposta refomista ao capitalismo (ou, mais modestamente, à sua mais recente aplicação sob a forma de «austeridade»), a vitória eleitoral do Syriza foi aplaudida por todos e mais algum. Agora é que a Europa ia ver a força da mobilização cidadã. Agora é que a desobediência à Europa da austeridade ia ser trazida para cima da mesa. Agora é que se iam lançar na luta as forças que procuram uma nova Europa, devolvida ao seu projecto de fraternidade entre os povos, perante uma direita incapaz de suster a torrente da vontade do eleitorado. Havia papeis, dobrados em quatro e metidos em caixas, que iam meter em sentido Merkel e Hollande, Schäuble e os banqueiros de Frankfurt. Quando esses mesmos banqueiros chegaram fogo aos papeis pintados, e riram até às lágrimas da furiosa indignação com que, de testa franzida, os reformistas lhes diziam «mas é a vontade popular! mas é o Estado de direito! mas foram eleições livres! respeito e honradez e vergonha e sentimentos morais!!!», o silêncio apoderou-se dos syrizettes de toda a ordem. Até hoje.
Tsipras governa hoje como qualquer governante de um partido da direita grega governaria: aplica um programa da troika, bate em manifestantes, faz acordos de cooperação militar com os sionistas, acalma os mercados o mais que pode. Faz tudo isso, por sinal, sem que os membros do Partido da Esquerda Europeia achem especialmente insólito que o Syriza permaneça nessa organização, lhe peçam contas, ou se distanciem em palavras ou actos. É no mínimo uma demonstração de rápida aprendizagem para os que eram tão lestos em condenar silêncios alheios sobre o que se passava na URSS e no Bloco Leste. Mas revela ainda o elemento fundamental do nosso tempo: perante a inevitabilidade de abandonar uma estratégia eleitoralista, institucionalista, bem comportadinha, com propostas responsáveis e enorme sentido de Estado, os reformistas sentem fraquejar a sua carne pequeno-burguesa, acobardada no medinho da confrontação e das nódoas negras da bastonada. Querem enfrentar a nova investida do capital com as armas que usavam na expansão do capitalismo, mais ou menos como um combatente que se apresentasse de elmo, armadura, lança e cavalo branco, para enfrentar os B-52 da Força Aérea estadunidense. Assim não se ganha nunca.
E este é o problema fundamental que subjaz ao silêncio: o mundo abre-se em novos problemas que exigem novas soluções. A dinâmica da crise arrancou o véu de sentimentalismo piegas, qual cortina cor-de-rosa com póneis, que encobria e justificava a dominação burguesa. O que ficou a descoberto nos últimos anos, descarnadamente, foi a disposição da burguesia a quebrar quaisquer acordos, quaisquer leis, quaisquer princípios, a um vale tudo menos tirar olhos para conseguir os seus intentos. Isso afogou na água gelada do cálculo mesquinho de que falava Marx as relações entre pessoas na sociedade burguesa, e levantou um problema extremamente aborrecido: o de ser preciso recorrer à força para libertar quem trabalha, posto que quem explora se socorre da força (e da força bruta) para o fazer. Para gente curtida e treinada nos salões atapetados da discussão amável, da negociação engravatada, que espera persuadir pela força dos argumentos e pela sedução da forma de os comunicar, há-de doer como uma patada nos dentes perceber a inutilidade do acervo de conhecimentos acumulados nessas matérias perante uma guerra, aberta e literal, onde a ilegalidade será uso e costume e a violência física um método tão recorrente quanto for preciso. É por isso pouco surpreendente que, para o evitar, essa esquerda antes queira fazer de feitor do patrão, enquanto nos promete que chorará, condoída, o fado dos escravos que oprime.
Em conclusão, esta esquerda não nos serve para coisa nenhuma. Não percebe que o tempo dos paninhos quentes já acabou, se é que alguma vez existiu, e não entendendo o problema, naturalmente, sugere uma metodologia incorrecta para o resolver, que inevitavelmente conduz ao syrizismo de coloração mais ou menos amarelada. Recentrar a discussão sobre bases que rejeitem o reformismo, compreendam a ofensiva burguesa em curso e as respostas que ela exige, ao nível da organização popular e das formas de luta a empregar, é uma questão de estrita sobrevivência.
Sem comentários:
Enviar um comentário