Natal à beira-rio


É o braço do abeto a bater na vidraça!
É o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
a trazer-me da água a infância ressurrecta.

Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
que ficava, no cais, à noite iluminado...

Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
mais da terra fazia o norte de quem erra.

Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
à beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia!

David Mourão-Ferreira
Cancioneiro de Natal (1971)

Quando um Homem quiser


Tu que dormes a noite na calçada de relento
Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
És meu irmão amigo, és meu irmão

E tu que dormes só no pesadelo do ciúme
Numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo, és meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce
uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto
que há no ventre da mulher

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e comboios de luar
E mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo, és meu irmão

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo, és meu irmão

Ary dos Santos

Ladainha dos Póstumos Natais


Há-de vir um Natal e será o primeiro
 em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
 em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
 em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
 em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
 em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
 em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
 em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
 em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão-Ferreira

Poema de Natal


        Para isso fomos feitos:
        Para lembrar e ser lembrados
        Para chorar e fazer chorar
        Para enterrar os nossos mortos —
        Por isso temos braços longos para os adeuses
        Mãos para colher o que foi dado
        Dedos para cavar a terra.
        Assim será nossa vida:
        Uma tarde sempre a esquecer
        Uma estrela a se apagar na treva
        Um caminho entre dois túmulos —
        Por isso precisamos velar
        Falar baixo, pisar leve, ver
        A noite dormir em silêncio.
        Não há muito o que dizer:
        Uma canção sobre um berço
        Um verso, talvez de amor
        Uma prece por quem se vai —
        Mas que essa hora não esqueça
        E por ela os nossos corações
        Se deixem, graves e simples.
        Pois para isso fomos feitos:
        Para a esperança no milagre
        Para a participação da poesia
        Para ver a face da morte —
        De repente nunca mais esperaremos...
        Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
        Nascemos, imensamente.

Vinicius de Moraes