POEMA

SEGUNDO NASCIMENTO


Depois que se romperam os sapatos,
e deixei a gravata pior que uma rodilha no caixote do lixo,
é que vi bem o céu.

Um homem levantou a vista dos torrões e olhou para cima.
Mil cadeias inúteis se quebraram.
Mil caras, mil sorrisos, mil atitudes passaram.
Mil crenças se apagaram.
E dentro de mim mesmo surgi eu.

Enquanto se perdeu a última falripa da sola do sapato
e se esgarçou o fio de seda da gravata,
saltei a outro mundo.
Já não entendo as velhas relações nem amo as minhas velhas amizades.
Tudo o que é dantes me aparece inodoro, insípido, incolor, sem significação.
Já não tenho a noção de caminhar no meio de maltrapilhos.
Não há mais eu e eles porque passou a haver unicamente nós.
Os doutores, as madames e as meninas em série nunca mais me viram
porque passam por mim sem me reconhecerem
e eu não consigo distingui-los bem na galeria imensa do friso dos fantoches.

Tenho a alma repleta de alegria
e os braços cheios de força
e o coração a transbordar amor.

Bendita a miséria que rompeu os sapatos
e esgarçou a gravata que abandonei no lixo
e me fez ver o céu.

Livre.

Agora que deitei fora as lentes emprestadas,
e mandei ao diabo as crenças emprestadas,
e cuspi no altar das coisas consagradas,
agora, sim: sou eu.


Mário Dionísio

(«Anunciação»)

7 comentários:

  1. A força que um homem sente, quando sente que é ele próprio!
    Abraço

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  2. Todas as vidas deviam ter um dia assim. De viragem... de absoluta claridade!

    Abraço.

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  3. E eu, que tenho andado trite com toda a injustiça deste mundo, fiquei "repleta de alegria" ao ler este poema.

    Um beijo.

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  4. poesianopopular: é verdade.
    Um abraço.

    samuel: que diferente seria o mundo!...
    Um abraço.

    Graciete Rietsch: ainda bem, camarada.
    Um beijo.

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  5. Mais um poema fantástico! Cheio de força, confiança e Alegria!

    Beijos grandes.

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  6. não sei se mario dionisio, chegou a conhecer o "abóbora".
    Mas quem suportou aquele regime repleto de nada ou de tudo que nos faz falta, saiu mais forte.
    abraço do vale.

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  7. Maria: um poema cá «dos nossos»...
    Um beijo grande.

    do vale: conheceu, ó se conheceu...
    Um abraço.

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