POEMA

INVENTÁRIO


E, apesar de tudo, sou ainda o Homem,
um bípede com fala e sentimentos!
Ao cabo de misérias e tormentos,
continua
a ser a minha imagem que flutua
na podridão dos charcos luarentos!

Sou eu ainda a grande maravilha
que se mostra ao mundo!
O negro abismo que tem lá no fundo
um regato a correr:
uma risca de céu e de frescura
que murmura
a ver se alguma boca quer beber.

Quanto o grave silêncio da paisagem
me renega e protesta,
pouco importa na festa
deste encontro feliz;
Obra de Arcanjo ou de Satanás,
eu é que fui capaz
de fazer o que fiz!

Podia ser melhor o meu destino,
ter o sol mais aberto em cada mão...
Mas, Adão,
dei o que a argila deu.
E, corpo e alma da degradação,
o milagre é que o Homem não morreu!

Não! Não me queiram na cova que não tenho,
porque eu vivo, e respiro, e acredito!
Sou eu que canto ainda e que palpito
no meu canto!
Sou eu que na pureza do meu grito
me levanto!


Miguel Torga

(Com este poema, o Cravo de Abril despede-se de Miguel Torga - e anuncia o próximo poeta: Sidónio Muralha)

7 comentários:

  1. Despedes-te mravilhosamente bem. Obrigada por me teres dado a oportunidade de ler e reler tão maravilhosos poetas. E cá fico ansiosa à espera do Sidónio Muralha.
    Um beijo.

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  2. Este poema podia chamar-se 'grito'...
    Mas Torga lá saberá porque lhe chamou 'inventário'.
    Espero então pelo Sidónio Muralha.

    Um beijo grande

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  3. As tus escolhas são certeiras, amigo! Sidónio Muralha será muito bem vindo:))

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  4. Graciete Ritsch: Muralha é um dos Grandes.
    Um beijo.

    Maria: era um bom título, sem dúvida.
    Um beijo grande.

    Justine: bem vindo como todos os poetas que chegam...
    Um beijo.

    smvasconcelos: um beijo.

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  5. Existe o homem... bom, ou menos bom, ou mau... mas apenas o Homem!

    Abraço.

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