POEMA

REQUIEM PARA PIER PAOLO PASOLINI


Eu pouco sei de ti mas este crime
torna a morte ainda mais insuportável.
Era Novembro, devia fazer frio, mas tu
já nem o ar sentias, o próprio sexo
que sempre fora fonte agora apunhalado.
Um poeta, mesmo solar como tu, na terra
é pouca coisa; uma navalha, o rumor
de abril podem matá-lo - amanhece,
os primeiros autocarros já passaram,
as fábricas abrem os portões, os jornais
anunciam greves, repressão, dois mortos na primeira
página, o sangue apodrece ou brilhará
ao sol, se o sol vier, no meio das ervas.
O assassino esse seguirá dia após dia
a insultar o amargo coração da vida,
no tribunal insinuará que respondera apenas
a uma agressão (moral) com outra agressão,
como se alguém ignorasse, excepto claro
os meritíssimos juízes, que as putas desta espécie
confundem moral com o próprio cu.
O roubo chega e sobra excelentíssimos senhores
como móbil de um crime que os fascistas,
e não só os de Saló, não se importariam de assinar.
Seja qual for a razão, e muitas há
que o Capital, a Igreja e a Polícia
de mãos dadas estão sempre prontos a justificar,
Pier Paolo Pasolini está morto.
A farsa a nojenta farsa essa continua.


Eugénio de Andrade
(«Epitáfios» - 1949-1979)

6 comentários:

  1. Tão forte - quase violento - e tão bonito ao mesmo tempo...
    E Pasolini, tão único...

    Obrigada, Fernando Samuel.

    Um beijo grande

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  2. "Podeis dar-nos a morte,
    a mais vil, isso podeis
    - e é tão pouco!"

    "Poupar o coração
    é permitir à morte
    coroar-se de alegria."

    Um abraço!

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  3. Gosto muito de Pasolini (a arte resiste) e deste poema tão sentido, tão profundo.

    GR

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  4. É urgente abater esta farsa...
    Pungente, este poema.
    beijo,

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