"Ninguém ensinava gramática como Lencastre. Não só as regras, mas a língua, a portuguesa língua, como ele dizia, usando, como mais tarde vim a saber, a expressão do poeta António Ferreira. Os verbos, o peso próprio de cada substantivo, o doseamento dos adjectivos, poucos mas bons, ensinava ele, as vírgulas, a virgulazinha que regula o trânsito, dizia Lencastre, fumando o giz ou escrevendo no quadro com a prisca. Cabelo quase ruivo, encrespado, andava com passos muito rápidos, os pés um pouco para fora. Tinha com a língua portuguesa uma relação, por assim dizer, carnal. Ou religiosa. Ou ambas. Sentia que a missão da sua vida era defender a língua, ensinar a falá-la com as sílabas todas, obrigar a escrevê-la sem erros, o predicado a concordar com o sujeito. Ai de quem, na leitura, comesse a última sílaba, ou de quem, na cópia, borrasse a escrita. Lencastre podia ficar completamente alterado por causa de uma sílaba engolida, uma vírgula mal posta, um erro de ortografia, um verbo mal conjugado. Agarrava no desgraçado pelos pés e obrigava-o a conjugar o verbo, assim, de cabeça para baixo.
(...)
No Inverno a Escola era feia e triste. As mãos enregeladas, muitas delas cheias de frieiras, mal podiam pegar nas canetas. As orelhas doíam, a humidade do rio subia pela encosta acima e atravessava a roupa que era pouca e leve e muitas vezes rota e remendada. Eu olhava os pés descalços e cheios de feridas dos meus companheiros, as cabeças peladas, os rostos cobertos de impigens e sentia uma repugnância misturada com revolta.
Porque é que uns, poucos, tinham sapatos e outros, a maior parte, não? Perguntei ao professor e ele ficou atrapalhado. Perguntei em casa e ficaram incomodados. Fiz muitas vezes essa pergunta. E de cada vez que a fazia sentia que estava a fazer uma pergunta inconveniente. Nunca ninguém me respondeu e continuo, de certo modo, a perguntar.
Porque ainda sinto o frio da escola. Ainda sinto o cheiro a pobreza, o pouco. Foi sobretudo isso que aprendi, além da gramática, das contas, da História Pátria, dos rios, das serras e das linhas de caminho-de-ferro. Aprendi a conjugar os verbos e nunca foi preciso o Professor Lencastre virar-me de cabeça para baixo. Mas a quem tenho eu de agarrar pelos pés e bater com a cabeça no chão para que de uma vez por todas me digam porque é que uns usavam sapatos e outros não?"
Manuel Alegre - Alma
Bonito, não?
(...)
No Inverno a Escola era feia e triste. As mãos enregeladas, muitas delas cheias de frieiras, mal podiam pegar nas canetas. As orelhas doíam, a humidade do rio subia pela encosta acima e atravessava a roupa que era pouca e leve e muitas vezes rota e remendada. Eu olhava os pés descalços e cheios de feridas dos meus companheiros, as cabeças peladas, os rostos cobertos de impigens e sentia uma repugnância misturada com revolta.
Porque é que uns, poucos, tinham sapatos e outros, a maior parte, não? Perguntei ao professor e ele ficou atrapalhado. Perguntei em casa e ficaram incomodados. Fiz muitas vezes essa pergunta. E de cada vez que a fazia sentia que estava a fazer uma pergunta inconveniente. Nunca ninguém me respondeu e continuo, de certo modo, a perguntar.
Porque ainda sinto o frio da escola. Ainda sinto o cheiro a pobreza, o pouco. Foi sobretudo isso que aprendi, além da gramática, das contas, da História Pátria, dos rios, das serras e das linhas de caminho-de-ferro. Aprendi a conjugar os verbos e nunca foi preciso o Professor Lencastre virar-me de cabeça para baixo. Mas a quem tenho eu de agarrar pelos pés e bater com a cabeça no chão para que de uma vez por todas me digam porque é que uns usavam sapatos e outros não?"
Manuel Alegre - Alma
Bonito, não?
Sim camarada, lindissímo!
ResponderEliminarMas o que não entendo, é como é que um homem consegue escrever desta maneira, ter este tipo de dúvidas a atormentar-lhe a alma e depois, na hora de votar leis que deixam cada vez mais portugueses descalços e sem sapatos, abandona o Parlamento!
O que não entendo, é que um homem que vê a miséria que, cada vez mais, atinge a grande maioria dos portugueses, não tenha depois a coragem de votar contra as arbitrariedades e injustiças que este governo (curiosamente do seu partido!!!) impõe!
Se o meu avô fosse vivo, diria com certeza, no seu português directo de quem não sabia ler nem escrever, mas tinha as mãos marcadissímas pelo trabalho e os pés deformados, por muitos e muitos anos sem sapatos:
" Ora porra, se ele fosse bardamerda fazia bem melhor!!"
Beta: há coisas que realmente não se compreendem. Transcrevi o excerto deste livro pelo excerto em si e não pelo autor. Em relação ao autor há coisas que realmente não me entram na cabeça: o votar leis com as quais não concorda ainda é como o outro: se o seu partido concorda com a lei, então ele, mesmo que não concorde, aprova-a para não criar instabilidade. Se isto acontecesse em algumas, poucas, leis ainda o perceberia. A questão é que ele diz que não se revê no PS nem nas suas leis. Se não se revê porque não sai do partido? Estranho, no mínimo...
ResponderEliminaro desgraçado vai morrer de velhice sem saber a resposta. Coitadinho!...
ResponderEliminar«Mas a quem tenho eu de agarrar pelos pés e bater com a cabeça no chão…»
ResponderEliminarVá lá eu ajudo-te, Manel;
Vais bater com a cabeça no chão ao,
Manuel Alegre, Mário Soares, a toda a corja do PS, ao Salazar e a tantos outros!
Manuel Alegre é um Grande Oportunista!
Depois das críticas que faz, só não sai do PS porque lhe faltam os maiores valores que o Homem deve ter: dignidade, coerência e honestidade!
Quanto a escrever bem? Sim, escreve, não fazendo dele um homem íntegro.
Temos os exemplos de gente célebre como; Maestro Herbert von Karajan, o Nobel da Literatura Günter Grass e tantos outros que foram aclamados mas, eram simpatizantes nazis.
GR
GR: é verdade. Mas não podemos de deixar de fazer o teor da sua escrita uma bandeira nossa só porque o autor já abandonou essa ideologia. Afinal ainda há trovas para o vento que passa...
ResponderEliminarTalvez este retrocesso político me esteja a cegar.
ResponderEliminarUm bj,
GR
José Neves: Não me parece que o Manuel Alegre tenha alguma vez abandonado a sua ideologia. Parece-me que foi sempre a mesma: a do oportunismo, e estou de acordo com a GR. Trata-se aqui de outra questão: a de saber se podemos ou devemos separar o artista do homem. Se devemos separar as belezas dramáticas de Richard Strauss da sua ligação íntima com o fascismo; se devemos amar o simolismo cromático e intensamente belo de Wagner apesar das suas posições frequentemente pré-fascistas; se devemos cantar emocionados a "Trova do Vento que Passa" apesar de o autor da sua poesia ser um parvalhão (desculpa-me o vernáculo). E podia citar muitos outros exemplos.
ResponderEliminarEm geral quero pensar que sim. A criatividade humana é fabulosa, e é possível encontrar nas obras de arte traços de um profundo humanismo que vão muito para além da postura humana dos seus autores. E por isso, é inegável que o Manel Triste tem belos poemas, que o Wagner é inevitavelmente empolgante e que seria uma pena viver sem ouvir algumas das óperas e poemas sinfónicos do R. Strauss. É por isso também que, com muita dificuldade, lá vou engolindo o Sérgio Godinho ma Festa do Avante.
Mas a questão não é pacífica, como sabes.
'Ganda malha, Mide.
ResponderEliminarAgora é que disseste tudo.
mide: concordo contigo, em quase tudo. A questão é esta: porque uma pessoa deixa de ser comunista a partir de certo momento da sua vida, não o quer dizer que nunca o tenha sido. É por isso que o Manuel Alegre esteve no PCP, bem como o Vital Moreira, ou o Zé de Magalhães, ou o Hespanha, ou o Gomes Canotilho, ou Carlos brito, ou, ou... Foram fervorosos militantes comunistas, todos eles. Deixaram de abraçar a causa comunista. Tudo bem. Mas a obra que produziram baseada nos seus ideais de então tem que ser entendida consoante esse momento de produção e não consoante o futuro do produtor. Quero eu dizer: toda a obra vale por ela própria bem como pelo motivo da sua criação, não pelas crenças e ideologias posteriores e nada que ver consigo próprias. Confuso? Como tu dizes, a questão não é pacífica. eheh um abraço, amigo
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